Taca remédio nela – ou a foto do bebê morto.
Maria da Silva sempre foi um desses nomes que parecem inventados, de tão comuns nas histórias do Brasil. Assistida pelo CRAS da pequena cidade onde vivia, passou meses entre consultas, palestras e o circuito do pré-natal.
Era o terceiro filho, mas o cuidado parecia o mesmo de quem vivia o primeiro. Ela queria fazer tudo certo, como se isso pudesse apagar os traços de um mundo que insiste em não dar certo para quem tem a pobreza tatuada na alma.
No hospital de referência, as paredes brancas cheiravam a assepsia e a descaso. A médica, experiente, olhou para Maria como quem avalia um caso clínico, e não uma mulher. Disse que não era hora da cesárea, que o bebê não estava pronto!
Mandou que ela voltasse para casa, sem considerar que, para Maria, voltar para casa era voltar para uma palafita, com a mãe acamada, o filho com síndrome de Down, o marido desempregado e os olhares carregados de quem sabe que o amanhã não traz alívio, só mais peso.
Três dias depois, o peso era insuportável. A cesárea veio tarde. O cordão umbilical, aquele laço que deveria ser de vida, tornou-se um nó de morte. Quando o bebê nasceu, já era tarde demais para tudo — exceto para a dor:
Um bebê lindo e gordo, o tipo que todos dizem “nasceu com saúde”. Mas não nasceu. Maria, em sua ingenuidade, mandou a foto do pequeno morto para a assistente social: -“Olha como ele era bonito”, dizia a mensagem, como quem tenta provar para o mundo que a tragédia teve sua beleza interrompida.
Apática, sem condições de voltar a sua vida anterior, que de bela já não tinha mais nada, foi então medicada pelo psiquiatra da unidade de saúde: Um remédio para acordar, um para dormir e nenhum para viver.
Desde então, Maria só sabia repetir uma frase: “Taca remédio nela.” Era isso que saía em cada sessão com a psicóloga do CRAS. Quando perguntava o que ela queria, “Taca remédio nela.” Quando falava em futuro, “Taca remédio nela.”
O “nela” podia ser a médica, o sistema, a vida ou até ela mesma. Ou tudo junto. Era difícil saber. Mas Maria sabia. Sabia que o remédio não curava nada — só anestesiava.
Hoje de manhã, Maria acordou. Ainda era cedo, e a luz do sol entrava pelas frestas da casa de pau a pique. Espiou o espelho trincado pendurado na parede. Ali estava ela: um vazio de mulher.
Olhou fundo nos próprios olhos e sussurrou para si mesma: “Meu Deus, que sonho.” Mas não era um sonho de esperança. Era um sonho químico, desses que vêm em gotas de Rivotril. A vida parecia embalada em algodão.
E o dia seguia. Na casa apertada, o marido largado no sofá, a mãe resmungando de dor, o filho rindo de algo que só ele via. E Maria, com o corpo vazio, mas a mente cheia de ideias. Ideias ruins. Ideias de justiça torta. De vingança.
“Taca remédio nela”, repetiu.
Já tinha pensado em mil maneiras de matar a médica e se matar depois, mas viu na internet que os casos de mulheres que fazem isso são muito poucos, e ela de tão excluída da vida não queria participar de mais um grupo pequeno.
Não! Chega de exclusão nessa vida, queria mesmo era se integrar a algo maior, talvez ao cuidado que lhe foi tão docemente esquecido.
O remédio ainda batia forte, voltou a dormir.
Talvez fosse isso: se a vida não tem cura, pelo menos que ela venha embalada em sono. Porque dormir não dói. E no sonho — a não ser que seja um pesadelo não deve haver médicos, nem cordões, nem relógios que marcam o tempo errado. Só um silêncio que parece durar para sempre.
Depois da psicóloga do centro de atendimento solicitar os prontuários médicos, os documentos chegaram: Violência obstétrica constatada.
Contudo, aparentemente nada mudou nem no sistema, nem no hospital, nem no pior de todos os campos: o coração da médica, que aparentemente sequer carrega qualquer remorso, e com o perdão da sinceridade caro leitor/a, talvez era ela quem não deveria ter nascido.
Mas ai também esqueceríamos dos milhares de outros partos que ela fez e deram certo. Existe de fato justiça? Se esta existe, tem como vê-la divorciada da vingança?
Papo de quem consegue acessar este texto. Porque Maria, ah, Maria não tem boca para palavras, não tem voz para diálogos. A boca de Maria é outra coisa: é um portal de remédios, uma âncora que desce amarga em silêncio.
Talvez porque, no mundo de Maria, as palavras já não curam, tamanha sua dor. Ou talvez porque, em mundos como o dela, as palavras nunca chegam.
Maria, não tem boca para nada, só para tomar remédio.
Resta o psicotropico, amargo, frio, imposto. E nós, que falamos, escrevemos e acessamos, o que fazemos com o silêncio de Maria? O que fazemos com tantas Marias que têm bocas, mas jamais terão vozes?"
Taca remédio nela.